Delfim Neto
O "milagre econômico brasileiro" é a denominação dada à época de excepcional crescimento econômico ocorrido durante o Regime militar no Brasil, também conhecido pelos oposicionistas como "anos de chumbo", especialmente entre 1969 e 1973, no governo Médici. Nesse período áureo do desenvolvimento brasileiro em que, paradoxalmente, houve aumento da concentração de renda e da pobreza, instaurou-se um pensamento ufanista de "Brasil potência", que se evidencia com a conquista da terceira Copa do Mundo de Futebol em 1970 no México, e a criação do mote: "Brasil, ame-o ou deixe-o".
As três vitórias na Copa do Mundo ajudaram a manter no ar um clima de euforia generalizada, nunca antes vista, e daquilo que Elio Gaspari apelidou de "patriotadas". O Brasil cantava a canção Pra frente Brasil.
Foi um período paradoxal da História do Brasil. Ainda diz Elio Gaspari em sua obra A Ditadura Escancarada :
O Milagre Brasileiro e os Anos de Chumbo foram simultâneos. Ambos reais, co-existiam negando-se. Passados mais de trinta anos, continuam negando-se. Quem acha que houve um, não acredita (ou não gosta de admitir) que houve o outro.
Como se iniciou
Após o governo de Juscelino Kubitschek, entre 1956 e 1961, no qual o Brasil passou por acelerado crescimento econômico graças ao Plano de Metas - o programa "cinquenta anos em cinco" - que era baseado na política de substituição de importações sob a inspiração da CEPAL, e com a construção de Brasília, surgiu uma forte pressão inflacionária no País, já sentida no final do governo JK e que se agravou com a renúncia de Jânio Quadros e com os impasses institucionais que marcaram o período de João Goulart (1961-1964). Tais fatos fizeram com que se elevassem os défices do governo de tal forma que se formou uma forte inflação de demanda.
Logo após o Golpe Militar que se seguiu em abril de 1964, no início do governo Castelo Branco, foi criado um primeiro Programa de Ação Econômica do Governo - PAEG , com dois objetivos básicos: formular políticas conjunturais de combate à inflação, associadas a reformas estruturais, que permitiram o equacionamento dos problemas inflacionários causados pela política de substituição de importações e das dificuldades que se colocavam ao crescimento econômico; o que requeria, agora, que fosse dado um segundo passo no processo: a expansão da então pequena indústria de base (siderurgia, energia, petroquímica) para evitar que o aumento da produção de bens industriais de consumo final, ampliada pela política de substituição de importações, provocasse um aumento insustentável nas importações brasileiras de insumos básicos, que a indústria nascente consumia de forma crescente.
Após um período inicial recessivo, de ajuste, que foi de março de 1964 até fins de 1967 - com a reorganização do sistema financeiro, a recuperação da capacidade fiscal do Estado e com uma maior estabilidade monetária - iniciou-se em 1968 um período de forte expansão econômica no Brasil.
De 1968 a 1973 o PIB brasileiro cresceu a uma taxa média acima de 10% ao ano, a inflação oscilou entre 15% e 20% ao ano e a construção civil cresceu, em média, 15% ao ano. Durante essa fase, o grande arquiteto e executor das políticas econômicas no Brasil foi Antônio Delfim Netto, que chegou a ser chamado de "super-ministro".
Em análises posteriores justifica-se esse grande crescimento afirmando que os mercados em que os investimentos se concentraram eram todos (usando a expressão inglesa) Green Field Market, ou seja, novas áreas para se investir. O mesmo ocorre nos dias atuais na República Popular da China. Mais do que uma consequência de política econômica bem planejada (apesar de muitas vezes pouco ética), o crescimento chinês é fruto do fato de muitos novos setores estarem se abrindo, possibilitando um rápido e vertiginoso aumento da atividade econômica.
O papel das estatais nesse processo
Delfim Netto.
Em 1967, assume o comando da economia Antônio Delfim Netto e seu interino José Flávio Pécora. Para Delfim, o PAEG teria provocado uma queda da demanda indesejada, causando recessão e redução do nível de empregos. Segundo Delfim, o desenvolvimento interno do mercado brasileiro poderia por si só gerar crescimento.[carece de fontes] Nesse contexto de recessão, o governo adotou medidas de inspiração keynesiana, aumentado o investimento nas empresas estatais, agora recapitalizadas graças à política da chamada verdade tarifária (isto é, fixação das tarifas sem influências políticas), que as tornavam lucrativas e competitivas - conceito esse que foi amplamente defendido pelos economistas e intelectuais brasileiros da época.
O Estado investiu muito na indústria pesada, siderurgia, petroquímica, construção naval e geração de energia hidrelétrica. O sucesso dessa política econômica logo se tornou evidente: o crescimento da produção de bens duráveis de consumo no Brasil daquele período alcançou a taxa média de 23,6% ao ano, e o de bens de capital 18,1%. As empresas estatais cresceram e, bem administradas, obtiveram lucros imensos.
"Obras Faraônicas"
Durante o Milagre Econômico, com intuito de romper a estagnação gerada pelo governo pós Juscelino Kubitschek e incentivar a integração nacional e o crescimento econômico, o governo militar impôs vários programas nas áreas de transportes, de energia e de estratégia militar . A imprensa na época, que com a atuação da censura vigente, não podia criticar diretamente o governo e chamou tais obras de "faraônicas" , aludindo a infraestruturas enormes e de pouca importância útil. Porém, ao longo dos anos, a maioria das obras, como Itaipu e a Ponte Rio-Niterói provaram-se importantes e necessárias. Mesmo com Itaipu o Brasil já sofreu com crises energéticas e a Ponte Rio-Niterói hoje se encontra em estado de saturamento máximo durante várias horas ao dia.
Programa nuclear brasileiro
Em 1972, é iniciada a construção de Angra 1 através da aquisição de um reator nuclear francês. Para os militares da época, o domínio da tecnologia nuclear era indispensável para soberania nacional, sendo que a construção da usina era o início para a obtenção de armas de destruição em massa secretamente.
Usina Hidrelétrica de Itaipu
Por meio de negociações com o Paraguai no início da década de 70 que pretendia melhorar os laços de cooperação entre os dois países e o aumento da capacidade de produção de eletricidade do país, a usina hidrelétrica é iniciada em 1975 e finalizada em 1982, sendo a maior usina hidrelétrica do país até a atualidade.
Integração econômica da Região Norte
Rodovia Transamazônica, Projeto Radambrasil e Zona Franca de Manaus
Visando a integração da Região Norte com o resto do país, o governo tomou uma série de medidas que permitiriam sua ocupação e desenvolvimento. Para isso, o antigo Projeto Radam fora retomado - cujo objetivo seria mapear e monitorar a vasta região amazônica - e uma zona especial de incentivo fiscal foi criada em Manaus, para romper com a estagnação econômica da cidade vivenciada na época. Também construiu-se uma extensa rodovia não-pavimentada, que partia do Nordeste e cruzava a maior parte da Amazônia Legal. Embora os dois primeiros projetos tenham apresentado grande importância para o país até hoje, a estrada não apresentou o objetivo esperado, devido às dificuldades em se mantê-la em um ambiente equatorial e devido a maior praticidade do transporte hidroviário na área.
Concentração de renda
Apesar do equilíbrio obtido nas contas externas, a dívida nacional cresceu exponencialmente nesse período, o que se tornou possível pelo elevado grau de liquidez internacional que então prevalecia. Os países produtores de petróleo, com a elevação ocorrida em seu preço a partir de 1971 e, sobretudo, após a crise do petróleo em 1974, dispunham de grande liquidez e estavam acumulando bilhões de dólares em seus caixas, que ofereciam, sob forma de empréstimos a juros relativamente baixos, aos países importadores de petróleo, seus clientes. O Brasil se utilizou amplamente desses financiamentos para consolidar seu crescimento e para aumentar suas reservas internacionais.
Esse forte crescimento econômico do Brasil, contribuiu, de forma paradoxal, para agravar ainda mais sua desigualdade sócio-econômica.
Como o Brasil necessitava - para crescer - de aumentar sua poupança interna, prevaleceu um conceito segundo o qual não se deveria adotar políticas econômicas de distribuição de renda já que as classes de renda mais elevada poupavam mais que as de baixa renda. Assim, segundo essa teoria, se a renda nacional fosse dirigida aos mais pobres, a poupança interna cairia (baseado no princípio econômico de que a propensão para consumir é maior nas classes de renda mais baixa).
Ficaram famosas as explicações dadas por Delfim na televisão, em que defendia: "É preciso primeiro aumentar o 'bolo' (da renda nacional), para depois reparti-lo".
Com isso adotou-se uma política salarial que os sindicatos apelidaram de "arrocho salarial". O salário mínimo real, apesar de cair menos do que no período entre 1964 e 1966, quando sofreu uma diminuição de 25%, baixou mais 15% entre 1967 e 1973.
Dessa forma, as vantagens do crescimento econômico não foram igualmente distribuídas pelas diversas camadas da população e ficaram concentradas, principalmente, nos capitalistas e nas classes sociais de renda mais alta. O salário mínimo continuou a ser achatado; graças à situação de "pleno emprego", que havia no período, os operários mais especializados conseguiram, na sua maioria, "descolar" seus salários do salário mínimo oficial e foram, assim, parcialmente beneficiados pelo crescimento econômico ocorrido.
A correção monetária das poupanças protegia, contra os efeitos da inflação, a classe média e média alta - que tinham contas bancárias - mas proteção não havia para as classes muito pobres, que viam seu dinheiro desvalorizar dia a dia nos seus bolsos. Isso provocava uma transfrência de renda das classes mais baixas para as mais altas, contribuindo para uma maior concentração de renda.
Os dados de 1970 mostram que os 5% mais ricos da população aumentaram sua participação na renda nacional em 9% (em relação a 1960) e detinham 36,3% da renda nacional. Já a faixa dos 80% mais pobres diminuíra sua participação em 8,7% no período, e ficara com 36,8% da renda.
Apesar do rápido crescimento econômico e da condição de pleno emprego que isso provocou, houve um "empobrecimento dos mais pobres": eles simplesmente não aumentaram sua renda, que era corroída em valor real pela inflação.
O crescimento econômico foi vigoroso: o consumo de energia elétrica crescia 10% ao ano10 , as montadoras de veículos produziram, em 1970, 307 mil carros de passeio, o triplo de 1964 . Os trabalhadores tinham em casa 4,58 milhões de televisores, contra 1,66 milhão em 1964.
Viveu-se um ciclo inédito de desenvolvimento no Brasil; o governo divulgava estes números na sua publicidade pela TV, e eles constituíam a viga mestra da política de sustentação publicitária do governo militar; criavam-se motes de "Brasil Potência", "Brasil Grande" e o mais famoso deles, "Brasil, ame-o ou deixe-o" ("slogan" amplamente divulgado, sob o patrocínio do Centro de Informações do Exército (CIE), que distribuía gratuitamente os adesivos nas cores verde-amarela, para serem exibidos, com orgulho, nos pára-choques de muitos carros particulares. Os opositores ao regime viam nesse mote mais uma "patriotada").
Segundo dados divulgados pelo IPEA Data, o coeficiente de Gini brasileiro era de 50,0 em 1960, tendo piorado para 57,0 em 1970 e para 62,0 em 1977, oscilando em torno desses números até hoje (2008), quando atingiu 52,0, o que revela uma lenta melhora, não tendo retomado aos patamares da década de 60.
Essa análise é correta quanto aos fatos mas é uma análise simplista dos acontecimentos no seu todo. Só comparar os coeficientes de Gini do início e do fim da fase de rápido crescimento econômico no Brasil distorce a compreensão do que realmente ocorreu nesse período. Embora tenha se tornado frequente repetir "ad nauseam" que "durante o milagre brasileiro não houve distribuição de renda", é preciso tentarmos entender como e por que esses índices não mudaram.
Não resta dúvida a ninguém que aqueles trabalhadores - e foram milhões - que conseguiram abandonar a propriedade rural onde trabalhavam - num regime muitas vezes degradante - e encontraram emprego formal na cidade - em algum ofício como, por exemplo, o de pedreiro na construção civil - passaram a viver muito melhor do que seus antepassados. Nesse sentido houve uma clara melhora de distribuição de renda, só tornada possível pela abertura dos novos postos de trabalho de maior produtividade, como consequência direta do crescimento econômico acelerado.
Ocorreu, durante todo o período do "Milagre Brasileiro", um dos maiores fluxos migratórios da história do país, com os trabalhadores rurais - que trabalhavam num regime arcaico e ineficiente, de baixa produtividade - sendo praticamente "expulsos" das propriedades rurais, onde viviam há gerações, em virtude da promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural de 1963, alterado em 1973.
Parte dessa imensa massa migratória foi absorvida pela indústria, sobretudo, mas não só de construção civil, mas também pelas indústrias pesadas que não exigiam escolaridade, e até mesmo pelo comércio. Mas parte considerável desse enorme contingente migratório habitou as favelas no entorno das grandes cidades, onde sua situação econômica, que já era precária, piorou ainda mais em relação à baixa escolaridade média e à estrutura ineficiente (quando não total ausência) dos serviços públicos. Se viviam com renda quase nula nas fazendas, agora convivem nas favelas com a pouca renda e com uma série de novos encargos monetários a arcar, aos quais não estavam habituados: têm que pagar pelo aluguel, água, luz, gás, transporte coletivo, etc.
O trabalho regular, "com carteira assinada", chegou a cobrir mais de 2/3 da população de São Paulo. O subemprego - os que trabalham nas ocupações de menor produtividade - sofreu queda marcante ao longo daqueles anos de crescimento. A mera transferência de contingentes expressivos de mão-de-obra ocupada na agricultura para empregos na indústria, na construção civil e nos serviços funcionais teve impacto significativo no grau de pobreza.
Cabe a nós nos indagarmos o que teria acontecido com o coeficiente de Gini no Brasil se a migração para as cidades não tivesse coincidido com um período de forte expansão da economia, em que pelo menos uma parte dos migrantes, expulsos do campo, encontrou emprego formal nas cidades.
Houve uma única tentativa do governo militar no sentido de cuidar do problema de distribuição de renda que, embora meritória, além de se revelar insuficiente atendia apenas à zona rural: em 1971 foi criado, pela Lei Complementar nº 11 de 25 de maio de 1971, durante o governo Médici, o Prorural, que concedia meio salário mínimo mensal a todo lavrador ou pequeno proprietário que completasse 65 anos.
O "milagre econômico" evidenciou a má distribuição de renda, conforme afirmado em O MILAGRE ECONÔMICO BRASILEIRO de 30 de agosto de 2003, escrito por Carlos Frederico Pereira da Silva Gama: Em 1979, apenas 4% da população economicamente ativa do Rio de Janeiro e São Paulo ganha acima de dez salários mínimos. A maioria, 40%, recebe até três salários mínimos. Além disso, o valor real do salário mínimo cai drasticamente. Em 1959, um trabalhador que ganhasse salário mínimo precisava trabalhar 65 horas para comprar os alimentos necessários à sua família. No final da década de 70 o número de horas necessárias passa para 153. No campo, a maior parte dos trabalhadores não recebe sequer o salário mínimo.
Este fenômeno de concentração de renda é uma consequência direta do próprio desenvolvimento econômico.
Para evitar que distorções indesejáveis na distribuição de renda tivessem ocorrido o governo precisaria ter adotado, deliberadamente, políticas econômicas específicas para corrigir a concentração de renda (o que não fez), sem as quais ela aumenta, naturalmente, ainda mais, durante os períodos de crescimento.
A concentração de renda no Brasil permaneceu praticamente inalterada - seus índices oscilando dentre as piores posições do mundo - durante as últimas quatro décadas. Uma análise desse problema, que perdura até os tempos atuais, se encontra no artigo sobre distribuição de renda.
Crescimento da miséria
Confirmando a premissa do parágrafo anterior, a miséria no Brasil também sofreu um bom incremento com as omissões da política de crescimento econômico adotada, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas:
A mortalidade infantil no estado mais rico da federação, São Paulo, teve um incremento da ordem de 10%.
Registrou-se o aterrador número de 600 mil menores abandonados na Grande São Paulo.
30 % dos municípios da federação não tinham abastecimento de água.
O Brasil teve o 9º Produto Nacional Bruto do mundo, mas em desnutrição perdia apenas para Índia, Indonésia, Bangladesh, Paquistão e Filipinas. Um estudo do Banco Mundial, feito em 1976, mostrava que 70 milhões de brasileiros eram desnutridos ou subnutridos, cerca de 64,5% da população da época.
O fim do milagre
A partir de 1973 o crescimento da economia brasileira diminuiu e em 1974 ocorreu o primeiro choque do petróleo, quando seu preço foi elevado abruptamente de US$3,37 para US$11,25 por barril. A crise do petróleo provocou uma aceleração da taxa de inflação no mundo todo e principalmente no Brasil, onde passou de 15,5% em 1973 para 34,5% em 1974. O crescimento diminuiu no período 1974-1979 passando a 6,5% em média; na época do "milagre" as taxas de crescimento eram, em média, superiores a 10% anuais, tendo alcançado picos de 13% anuais.
A balança comercial brasileira, a partir de 197415 , apresentou enormes défices causados principalmente pela importação de petróleo, que ultrapassaram os 4 bilhões de dólares ao ano. A capacidade de geração de divisas tornou-se insuficiente para sustentar o ritmo do crescimento. No final dessa década, a inflação chegou a 94,7% ao ano; em 1980 já era de aproximadamente 110 %, e em 1983 alcançou o patamar de 200%.
A chegada de Jimmy Carter à Casa Branca em 1977 também dificultou a sustentabilidade político-econômica da ditadura militar brasileira, visto que Carter foi o primeiro presidente desde o assassinato de John Kennedy em 1963 que não deu pleno apoio norte-americano a regimes anti-comunistas autoritários na América Latina.
A dívida externa brasileira chegou a US$ 90 bilhões. Para pagá-la, eram usados 90% da receita oriunda das exportações, e o Brasil assim entrou numa fortíssima recessão econômica que duraria até a década de 1990 e que tem como maior fruto o desemprego, que se agravou com o passar dos anos.