A censura e a liberdade de expressão no século XXI
Redação
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Do Jornal da USP
As faces modernas da censura
SOCIEDADE
Simpósio reúne pesquisadores para debater de que forma a restrição de conteúdos e o monitoramento de dados ferem as liberdades individuais nas sociedades do século 21
SILVANA SALLES
O senso comum trata a palavra “censura” como algo típico de regimes autoritários. Não causa nenhuma surpresa, portanto, lembrar que a ditadura que governou o Brasil de 1964 até o início de 1985 praticava a censura prévia. Ou que, décadas antes, o governo de Getúlio Vargas fazia o mesmo, inspirado pela censura imposta a Portugal pelo Estado Novo salazarista. O que surpreende é compreender que a censura ainda é praticada hoje em dia em diferentes países ao redor do mundo, mesmo quando não é institucionalizada e praticada pelo Estado. Atualmente, há uma espécie de censura difusa e diversificada, que se encontra capilarizada em países, instituições e empresas – o que dá uma nova dimensão, mais complexa e carregada de sutilezas e omissões, à discussão sobre liberdade de expressão.
Foi em torno desse problema que professores, pesquisadores e estudantes se reuniram nos dias 13 e 14 no 2º Simpósio Internacional Censura e Liberdade de Expressão em Debate. Promovido pelo Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, o evento foi realizado no espaço da Intercom em Pinheiros, zona oeste da capital paulista, e contou com a presença de um grupo de professores portugueses que integrou um curso de educação a distância realizado no segundo semestre de 2013, numa parceria entre o Obcom e o Centro de Investigação em Mídia e Jornalismo (CIMJ) da Universidade Nova de Lisboa.
Segundo a coordenadora do Observatório, a professora Maria Cristina Castilho Costa, o simpósio congregou os participantes de duas atividades: o curso de atualização de 2013 e um projeto de pesquisa sobre censura que analisa material coletado na internet. Além disso, a ocasião celebrou o lançamento de dois livros, Diálogos sobre Censura e Liberdade de Expressão – Brasil e Portugal, organizado pela própria Cristina Costa, e Comunicação e Controle – Observações sobre liberdade, controle e interdição de expressão, organizado pela vice-coordenadora do Obcom e chefe do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, professora Mayra Rodrigues Gomes.
Quem censura? – O debate sobre liberdade de expressão não é nada novo no Brasil, como lembrou o professor José Marques de Melo logo na mesa de apresentação do evento. Tem mais de 200 anos, tendo sido iniciado com a publicação do Correio Braziliense, de Hipólito da Costa, que editava o jornal do exílio em Londres. Mas é somente a partir de 2000, quando pesquisadores da ECA começaram a se debruçar sobre o Arquivo Miroel Silveira, que a comunidade acadêmica da USP começou a notar a necessidade de colocar novos parâmetros a essa discussão. O arquivo, sob guarda da USP, contém mais de 6 mil processos de censura prévia ao teatro paulista emitidos entre 1930 e 1970.
“O que nós vimos de 2000 para cá é que o que é considerado censura mudou radicalmente. Nós não temos mais aquela censura estatal que obrigava os jornalistas e artistas a mudar a matéria antes de ser publicada, ou o filme ou a peça de teatro, como vemos no Arquivo Miroel Silveira”, explica Cristina Costa. Para identificar como é feita a censura na atualidade, o Obcom criou uma metodologia de trabalho que se inicia com o recolhimento de material sobre o assunto a partir de ferramentas de busca e de portais dos principais jornais nas línguas inglesa, espanhola e portuguesa. A coleta, que é feita por bolsistas de iniciação científica, passa então pela triagem dos coordenadores de língua e é enviada para um comitê científico que se reúne semestralmente para analisar o material.
Esse material é tão diverso que inclui desde notícias sobre restrições de veiculação à informação na Venezuela à questão da publicação de biografias não autorizadas no Brasil, incluindo, no meio do caminho, casos como o da campanha contra a apresentadora Laura Bozzo, no México, acusada de utilizar um helicóptero oficial do governo para fazer uma reportagem de TV sobre o furacão Manuel e se recusar a fornecer ajuda humanitária para as vítimas. Ou proibição de exibição de desenhos animados considerados violentos na China. A limitação do uso de redes sociais no ambiente de trabalho imposta a funcionários públicos na Austrália. A rotulagem de produções cinematográficas na Suécia de acordo com a classificação das personagens femininas como exemplos para as mulheres ou não. A ação do politicamente correto sobre o filme Walt nos Bastidores de Mary Poppins, no qual o personagem Walt Disney não aparece fumando um único cigarro, embora se saiba que a pessoa Walt Disney fumava três maços por dia. A pressão do governo britânico a jornalistas para que não publicassem os dados confidenciais vazados por Edward Snowden. Exemplos não faltam.
Em todos eles, a ambiguidade foi uma característica importante observada pelos pesquisadores: para esconder uma justificativa político-ideológica, a censura se utiliza de um discurso moralizante, que age no campo do senso comum. Sexualidade, gênero, produtividade e segurança nacional são fatores que aparecem no cerne desse tipo de discurso.
Outras tendências das novas formas de censura incluem o foco no audiovisual, que é motivo de preocupação em todas as sociedades, ante o texto; uma noção retrógrada de comunicação que considera o público passivo diante dos meios; e a internet como ambiente natural do único sistema globalizado de censura do mundo e que, além disso, é em parte automatizado.
A vigilância nas redes foi tema de importantes questionamentos durante o simpósio. Ana Cabrera, do CIMJ, para quem o monitoramento de dados pessoais de usuários de internet “é um atentado às liberdades individuais”, lembrou que as notícias sobre a denúncia de Snowden a respeito da prática da National Security Agency dos Estados Unidos acabaram alimentando uma série de mobilizações sociais contra a espionagem em massa. Ela ressaltou o perigo que representa para a democracia que governos confundam informação com espionagem.A quebra da privacidade também aparece como preocupação quando se fala sobre o mundo do trabalho. A professora Roseli Figaro, chefe do Departamento de Comunicação e Artes da ECA, analisou o material sobre censura e trabalho e descobriu que a imprensa fala muito pouco sobre as restrições de acesso e o monitoramento de dados de funcionários que são feitos pelas próprias empresas empregadoras, embora esta seja uma prática bastante comum. “É uma invasão do direito humano à privacidade e à informação que já é feita há muito tempo e com muita perspicácia pelas empresas no mundo do trabalho, e nós nem prestamos atenção nisso. Racionalizamos e tratamos como se fosse normal”, disse ela. Roseli contou ainda que, quando iniciou a pesquisa em 2012, entrou em contato com órgãos da ONU e sindicatos, porém, nenhum deles mostrou interesse sobre o assunto.
Outra interface possível diz respeito a mecanismos que não são apresentados como censórios, mas que podem influenciar a produção de conteúdo artístico, como as fontes de financiamento – vide o caso dos órgãos de fomento do cinema português, que a partir dos anos 80 dão clara prioridade a filmes mais voltados para o mercado internacional – e a classificação indicativa.
O simpósio do Obcom: para pesquisadores, monitoramento de dados de usuários da internet é um atentado às liberdades individuais
A classificação indicativa é um tipo de supervisão e controle prévio de produtos culturais compartilhado pelos países ocidentais – que, às vezes, compartilham sistemas internacionais, como os selos etários para games. Os grupos que a definem variam de país para país. Nos Estados Unidos, entidades como a Motion Picture Association of America são responsáveis por avaliar e rotular as produções. No Brasil, a classificação indicativa é feita por um braço do Ministério da Justiça, constituído por avaliadores indicados pelo governo, que só no ano passado anunciou que faria um cadastro de voluntários para contribuir com o controle social dos produtos audiovisuais exibidos no País.
Mayra Rodrigues avalia que a classificação indicativa para produtos culturais é em geral tratada de forma positiva, geralmente como uma reivindicação popular e muitas vezes como um dispositivo de proteção à dignidade e aos direitos de crianças e adolescentes. No âmbito do projeto do Obcom, a professora analisou um conjunto de 78 matérias jornalísticas sobre o assunto, das quais a maior parte apoiava a iniciativa. Havia, no entanto, apenas cinco matérias que relacionavam a supervisão do conteúdo com a questão da violência nos produtos culturais. “Isso me surpreendeu um pouco, pois é em torno desse tópico que tem se construído o debate sobre classificação indicativa”, contou Mayra.
A professora lembrou, ainda, que essa demanda por controle de conteúdo é massiva na internet. Esse, aliás, foi um problema levantado diversas vezes ao longo do simpósio, principalmente no que diz respeito à nudez e à sexualidade.
O tabu da nudez feminina e da sexualidade que foge do heteronormativo pode ser observado nos bloqueios de conteúdo no Facebook, onde a censura se dá tanto por programação de software capaz de identificar alguns parâmetros nas fotos dos usuários quanto pela denúncia de pessoas que se sentem ofendidas com as imagens. Assim, fotos da Marcha das Vadias, no qual parte das manifestantes vai às ruas sem camisa ou sutiã para questionar o machismo e hipersexualização dos corpos femininos, foram apagadas da rede social com base em um apelo à moralidade, que também já foi utilizado como base para a repressão policial.
Da mesma forma, há inúmeros relatos de fotos de mulheres amamentando seus filhos que foram removidas e casos como o da jornalista Cynara Menezes, que teve uma postagem censurada porque fazia referência a um texto intitulado “Comunistas transam melhor”, publicado em blog no site da revista Carta Capital. A mesma controvérsia aparece em outros sites que, a exemplo do Facebook, procuram separar pornografia e “nudez gratuita” do nu artístico ou “científico”, como YouTube, Instagram e Tumblr.
O entendimento da nudez como ofensa não é novidade: em 1865 o quadro Olympia, de Édouard Manet, chocava os visitantes do Salão de Paris por se afastar do cânone acadêmico ao retratar uma mulher que poderia ser identificada como uma prostituta deitada como uma Vênus clássica, porém exibindo um olhar desafiador que mira diretamente o espectador.
Desinformação – “Achamos que tinha acabado a censura, mas nos últimos anos ficou claro que ela existe. Creio que andamos iludidos, porque a censura sempre lá esteve. Os jornalistas também estavam enganados, porque nunca quiseram denunciar tal censura. O perigo hoje em dia é que a censura não é mais monopólio do Estado, é das empresas, que são organizações fechadas onde não cabe liberdade nenhuma”, afirmou Leonor Areal, docente da Universidade de Coimbra, em Portugal. Em um mundo altamente digitalizado, onde um algoritmo é capaz de censurar previamente uma foto que se tenta postar em uma rede social, de que forma o acesso à informação é limitado?
Um dos fatores levantados por Leonor é a migração dos jornalistas para as atividades de media management, que ela considera análogas às do século 20, por envolverem o monitoramento constante do que se diz sobre uma organização nas redes.
Outro fator, este levantado por Francisco Rui Cádima, catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é o alinhamento da mídia com os interesses do sistema financeiro após o crash de 2008, o que revelou a falta de um olhar crítico ao processo social nas redações dos jornais europeus e a falta de transparência e escrutínio da coisa pública. “Estamos em uma sociedade da desinformação”, diz ele. Tampouco a pressa das redes sociais ajuda: se, de um lado, ela dá voz aos que não têm voz, por outro, esta pode ser uma voz distorcida.
Assim como seus colegas portugueses, Isabel Ferin, de Coimbra, coloca que a ruptura de 2008 indica uma passagem de modelo, na qual os direitos civis perdem em importância para os direitos contratuais e o cidadão é menos importante do que o consumidor. Nesse contexto, o Brasil aparece como um lugar onde “as funções do Estado estão sendo usurpadas por grandes corporações”, conforme diz o professor Eugenio Bucci, do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA.
Para combater esse diagnóstico, o professor Manuel Carlos Chaparro, também da ECA, propõe que se deixe de falar muito sobre liberdade de imprensa e se comece a falar mais em direito à informação. Ao mesmo tempo, é importante compreender o conteúdo do discurso que se produz no intervalo entre acontecimento e notícia, mesmo que este seja pequeno, como é atualmente. “É difícil entender censura e autocensura sem entender as relações de poder, a liberdade de imprensa que não é uma luta pelo direito à informação, mas pela liberdade para promover os interesses do capitalismo. As novas políticas permitem uma ruptura”, explica ele.
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