domingo, 15 de fevereiro de 2015
Dona Santa, rainha do Maracatu Elefante.
Ícone da cultura pernambucana
Dona Santa, rainha do Maracatu Elefante.
Acervo Katarina Real (Fundação Joaquim Nabuco)
Dona Santa, grande referência na memória dos maracatuzeiros ainda na atualidade, foi rainha do Maracatu Nação Elefante. Não sabemos quando se tornou rainha, apenas que ganhou o cargo ainda mocinha, vinda do maracatu Leão Coroado, e neste posto permaneceu até sua morte, ocorrida em 1962. Seu maracatu foi objeto de estudo do maestro César Guerra Peixe quando esteve no Recife, no final dos anos 1940 e de cuja observação resultou no livro Maracatus do Recife, publicado em 1955. Quando morreu, já nonagenária, teve enterro majestoso, digna da rainha que foi. Dona Santa, cujo nome de batismo era Maria Júlia do Nascimento, é tida como o maior símbolo da cultura afro-descendente no Recife e em torno de sua vida entretecem-se lendas e mitos, memória e história.
Percorrer as várias fases e faces da vida de Dona Santa tem me permitido formular diversas questões sobre práticas e representações construídas em torno da cultura de negros e negras, suas estratégias de inserção e reconhecimento social, e a constituição de redes de solidariedade diante das investidas disciplinares que visavam a constituição de uma sociedade “mestiça” e “racialmente democrática”. Afinal, estamos falando da terra de Gilberto Freyre, e foi aqui no Recife, nesses anos de 1930, enquanto ele escrevia para os jornais e publicava livros, organizava congressos e debatia a cultura pernambucana, nordestina, e brasileira, que Dona Santa foi presa como catimbozeira, ficou viúva e assumiu o comando de seu maracatu.
Sobre a vida de Dona Santa pouco se sabe efetivamente, além de dados bastante genéricos e controversos sobre a data de seu nascimento e sobre a condição de sua família (não sabemos se eram libertos ou não, se africanos ou crioulos). Sabe-se de seu casamento com o segundo sargento da Polícia Militar, João Vitorino, e sua eleição como rainha do maracatu Leão Coroado, ainda muito moça. A partir do momento em que ficou viúva, no final da década de 1920, ao que tudo indica, Dona Santa ganhou liberdade para firmar sua autoridade como mãe-de-santo e como líder do maracatu. Este é o período em que transformações culturais de vulto ocorriam no país, acerca das percepções sobre a cultura afro-descendente. Trata-se, portanto, de pensar como ao construir sua autoridade entre os negros e negras, e os intelectuais da cidade, Dona Santa contribuiu para transformar as representações construídas em torno dos maracatus e da cultura popular de modo mais amplo.
Quando Dona Santa assumiu a condução do Maracatu Elefante, era uma mulher viúva, mas se inseria numa rede de sociabilidade que lhe conferia poder e legitimidade, não só por ser rainha, mas por ser mãe de santo e juremeira afamada. Com mais de sessenta anos, tinha por obrigação proteger seus filhos e filhas de santo, e assegurar ao Elefante e seus maracatuzeiros um lugar ao sol no disputado carnaval recifense. A rainha, ao que tudo indica, cumpriu muito bem seu papel demonstrando que podia não só liderar seu grupo, mas também exercer o papel de mediadora cultural, criando condições para que seu grupo se sobressaísse na cena cultural da cidade, despertando a admiração e o carinho entre intelectuais, jornalistas, fotógrafos e escritores da cidade e do resto do país.
No meio intelectual recifense, Lula Cardoso Ayres e Ascenso Ferreira contribuíram sobremaneira para divulgar sua imagem, bem como para quebrar os estigmas que ainda perseguiam os maracatus. Nacionalmente, Dona Santa foi objeto de uma magnífica reportagem da revista O Cruzeiro, em 1947, ilustrada com fotografias de Pierre Verger, bem como teve uma pequena participação no filme de Alberto Cavalcanti, O canto do mar, em 1953. O maestro e compositor Guerra Peixe escolheu o Elefante como objeto de estudo, e mais uma vez a rainha foi celebrada nas páginas de Maracatus do Recife, publicado em 1955. Como resultado dessa popularidade, encontramos invariavelmente o maracatu Elefante se apresentando em quase todos os eventos em que autoridades ou celebridades visitavam o Recife entre as décadas de 1940 a 1960.
Dona Santa consolidou fama como rainha e matriarca dos negros e negras no Recife. Percorrer as notícias publicadas nos jornais no período comprova que a rainha solidificou uma imagem de poderosa sacerdotisa dos orixás, além, evidentemente, de juremeira. Sua autoridade entre os maracatuzeiros, conforme algumas reportagens de jornal, era inconteste. Conta Guerra Peixe que a rainha não precisava falar muito para manifestar seu desagrado diante de comportamentos que considerava indevido. Dona de um olhar penetrante, uma mirada bastava para que até o mais valente dos homens se calasse envergonhado do que tivesse feito. Possuidora de garbo e majestade, Dona Santa sempre desfilava no carnaval conduzindo seu maracatu desde Ponto de Parada, na zona norte da cidade onde se encontrava a sede, até as ruas centrais, apesar de sua avançada idade. E enquanto desfilava agraciava seus “súditos” com as bênçãos de seu espadim e cetro. Dona Santa só teria deixado de desfilar em duas únicas ocasiões: a morte de seu irmão, quando ainda era jovem, e do marido Vitorino.
Adentrando os anos cinqüenta, no entanto, Dona Santa já octogenária aceitou a oferta do Prefeito Pélopidas e passou a desfilar nos carnavais em um jeep. Mesmo assim, não perdeu o controle sobre seu maracatu até a sua morte, momento que trazia muita apreensão a todos. Desde os anos 1940 encontram-se pelas páginas dos jornais recifenses reportagens que prenunciam a morte da rainha. Ao final do ano de 1955 a notícia de sua morte correu a cidade. O prefeito Pelópidas Silveira teria telegrafado a sua família oferecendo pêsames, bem como auxílio financeiro para a realização do enterro. Mas quem morrera tinha sido uma princesa. Dona Santa teria rido muito de sua “morte” porque assim sabia como esta seria recebida pela cidade, e não recusou a oferta do prefeito para o enterro da princesa!
Apesar de sua grande disposição em viver, Dona Santa preocupava-se com o que aconteceria com o Elefante quando partisse. Não tinha descendentes diretos, e teria decidido que quando a morte a levasse, o maracatu também deveria deixar de desfilar. Esta questão é muito controversa na historiografia, e já provocou grandes debates e contendas calorosas sobre as razões da rainha. Há quem diga que sua decisão se apoiaria em antigas tradições africanas, conforme defendeu o jornalista Paulo Viana, que afirmava ser a rainha descendente de antigos reis, e com ela morria um antigo reinado. Mas houve quem quisesse ocupar seu lugar! Sua filha adotiva, Antonia, declarou aos jornais, que continuaria com a tradição. Mas sofreu tamanha oposição daqueles que pensavam que o maracatu também deveria deixar de existir, que efetivamente o Elefante não mais saiu às ruas. Foi para o museu!
Postado por Isabel Guillenhttp://inventariomaracatus.blogspot.com.br/
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