domingo, 21 de abril de 2013

A Eneida, Virgílio




Uma epopeia por encomenda

Eneias abandona Troia em chamas,
Federico Barocci, 1598, Galleria Borghese, Roma.
Virgílio já era ilustre pelas suas Bucólicas (37 a.C.), um poema pastoril, e Geórgicas (30 a.C.), um poema agrícola1 . Então, o imperador Augusto encomendou-lhe a composição de um poema épico que cantasse a glória e o poder do Império Romano. Um poema que rivalizasse e quiçá superasse Homero, e também que cantasse, indiretamente, a grandeza de césar Augusto1 . Assim Virgílio elaborou um trabalho que, além de labor lingüístico e conteúdo poético, é também propaganda política1 .
Muitos dos episódios na Eneida, que narra um tempo mítico, têm uma correspondência síncrona com a atualidade de Augusto. Por exemplo o escudo de Eneias, simbolizando a Batalha de Áccio, quando Otaviano derrotou Marco Antônio em 31 a.C. e a previsão de Anquises, no Hades, sobre as glórias de Marcelo, filho de Otávia, irmã do imperador.
Virgílio terminou de escrever Eneida em 19 a.C.. A obra está "completa" mas não está ainda "pronta" segundo o seu criador. Virgílio gostaria ainda de visitar os lugares que aparecem no poema e revisar os versos dos cantos finais. Mas adoeceu e, às portas da morte, pediu a dois amigos que queimem a obra por não estar ainda "perfeita". O grande poema, já conhecido de alguns amigos coevos, não foi destruído - para nossa felicidade e fortuna literária. Sem a epopeia virgiliana, não haveria Orlando Furioso, O Paraíso Perdido, Os Lusíadas, dentre outros grandes clássicos da literatura mundial.
Ambição de Virgílio
Virgílio, ao escrever esta epopeia, inspirou-se em Homero, tentando superá-lo: Virgílio empenhou-se em fazer da Eneida o poema mais perfeito de todos os tempos. De certa forma, a primeira metade (seis primeiros cantos) da Eneida tenta superar a Odisseia, enquanto a segunda tenta superar a Ilíada. A primeira metade é um poema de viagem e a segunda um poema bélico.
Dramatis personæ
 Aviso: Este artigo ou se(c)ção contém revelações sobre o enredo.
Há dois tipos de personagens na Eneida: os "humanos" e os "deuses". Há uma espécie de terceira entidade que é a do Fatum (Fado, destino) que nem os deuses podem obliterar.
Humanos
Eneias ferido por una flecha, curado pelo médico Iapige, com o filho Ascânio e assistido por Vênus, pintura em parede, século I a.C.,Pompeia, atualmente no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles
A Eneida tem doze capítulos, exactamente metade que a Odisseia.
Anquises, pai de Eneias
Ascânio, filho de Eneias e de Creusa.
Creúsa (filha de Príamo), esposa de Eneias.
Dido, rainha de Cartago.
Evandro, ancião
Eneias, troiano, sobrevivente à guerra de Troia
Turno, rei latino, inimigo de Eneias em Itália
Deuses
Apolo, deus do Sol
Éolo, deus dos ventos
Juno, mulher de Júpiter, opositor de Eneias
Júpiter, o rei dos deuses
Mercúrio, o deus mensageiro
Neptuno , deus dos mares
Vénus, deusa do amor e da beleza, coadjuvante de Eneias
Nota: É de bom grado utilizar a terminologia latina (romana) para falar da Eneida, já que se trata de um poema romano.
Tempo da diegese
O tempo da diegese, ou seja dos acontecimentos narrados, ocorre imediatamente após a queda da cidade de Troia, portanto a Eneida dá continuidade à Ilíada de Homero. Se a Odisseia narra as aventuras de um grego, de Ulisses (ou Odisseus), que tenta voltar para a sua casa e para a sua família, a Eneida narra as aventuras de um troiano que, depois da destruição de Troia, foge com a sua família. A sua fuga dá-se por mar. Eneias procura um sítio para fundar uma nova cidade.
Tempo do discurso
Quando o texto começa, a aventura de Eneias já se iniciou (a narrativa começa in media res, isto é, a meio da acção). O herói naufraga ao largo de Cartago (a actual Tunes) e vai ter com a rainha Dido. Conta-lhe as suas viagens até ao momento em que se encontra. Esse é um processo de analepse (em inglês, flashback). A partir do quarto capítulo, o tempo da diegese é contemporâneo ao da narração do poema, ou seja os acontecimentos são narrados como se estivessem acontecendo no presente.
Capítulos ou cantos
I - Eneias naufraga ao largo de Cartago
Depois de partir da Sicília, Eneias é arrastado por uma tempestade que o faz naufragar. Eneias observa a cidade. Ele que vem de Troia que fora totalmente arrasada e que tem por missão fundar uma nova cidade. É recebido por Dido, rainha de Cartago. Comove-se ao ver os afrescos nas paredes que narram a guerra de Troia. Dido começa a apaixonar-se por Eneias.
II- Eneias narra a Dido o último dia de Troia
Dido solicita a Eneias que lhe relate a queda da lendária cidade de Troia. Ele conta o célebre episódio do Cavalo de Troia. E conta como se deu a batalha durante a noite. Como o incêndio começou a devorar a cidade. No desespero Eneias decide lutar até morrer. Vênus, sua mãe, aparece e lhe diz: "vai procurar o teu pai, a tua mulher e teu filho e abandona a cidade".
A cidade é tomada pelos gregos. Eneias procura sua mulher, Creusa, gritando pelas ruas à sua procura. Encontra o espectro dela. Com muita ternura o fantasma de Creusa diz-lhe uma profecia: "que ele irá ter muitos infortúnios mas acabará por conseguir fundar uma nova cidade".
Eneias consegue fugir com o seu pai às cavalitas e com o seu filho pela mão.
III- Eneias narra a Dido as suas viagens rumo à Itália
Eneias continua a contar a Dido as suas peripécias para chegar à península Itálica, até aportar em Cartago temporária e acidentalmente. Conta a sua escala na Trácia e em Creta. A chegada a Épiro e à Sicília. Conta também seu encontro com Andrômaca (viúva de Heitor) e como faleceu o seu pai Anquises.
IV- Os amores de Dido e seu fim trágico
Morte de Dido, por Heinrich Friedrich Füger,, 1792, Museu do Ermitage, São Petersburgo
A rainha Dido, segundo a Eneida de Virgílio, após ouvir a narração do fim de Troia e das viagens e peripécias de Eneias, influenciada por Vênus, deusa do amor e mãe de Eneias, vê-se completamente apaixonada pelo herói. Ela convida os troianos (Eneias e seus companheiros) para uma caçada. No meio de uma tempestade, abrigados em uma caverna, Dido e Eneias se amam. Entretanto Júpiter envia Mercúrio a Eneias para lhe lembrar que seu destino é encontrar o Lácio e fundar uma nova cidade que substitua a cidade de Troia destruída e que governe as demais cidades do mundo. Eneias tenta sair de Cartago sem que Dido se aperceba. Sentindo-se abandonada, enganada e vilipendiada, furiosa e ensandecidada pelo amor não retribuído, ela se suicida enquanto partem os navios troianos e Eneias ainda pôde ver a fumaça da pira funérea saindo de seu palácio.
V- Os jogos fúnebres
Eneias aporta à Sicília e decide realizar jogos fúnebres em honra de seu pai Anquises. Já se passou um ano desde que este morreu.
(Este capítulo é importante para quem estuda a antropologia dos romanos porque dá indicações de como eles se relacionavam com a morte.)
VI- Descida de Eneias ao Mundo dos Mortos
Eneias e a sibila de Cumas, por William Turner.
Este é um dos episódios mais famosos da Eneida. Depois de Eneias ter partido da Sicília fez escala em Cumas. Nesse local consulta uma sacerdotisa (uma sibila - Antes o termo era empregado como nome próprio e com o tempo passou a ser usado como comum para todas aquelas que servissem a um deus) de Apolo. Ele tem um desejo intenso (em sonhos seu pai o havia conclamado a fazê-lo) de falar uma última vez com seu pai para lhe pedir conselho sobre a viagem. Obtém permissão de descer ao mundo dos mortos (este episódio faz lembrar outras descidas famosas ao mundo dos mortos: o episódio de Orfeu e Eurídice, a nekya de Odisseu, no canto XI da Odisseia. No mundo dos mortos vê vários espectros. Um deles o de Dido que, ladeada por seu primeiro esposo, não lhe responde.
O seu pai Anquises dá-lhe importantes informações sobre a sua viagem e faz uma longa profecia sobre o futuro glorioso de Roma.
VII- Chegada ao Lácio
(Latium (Lácio), província romana onde Roma se situará)
VIII- Evandro. Descrição do escudo de Eneias
O canto VIII começa com o rio Tibre a falar com Eneias, que lhe diz que deverá fazer aliança com Evandro e o seu povo. Eneias e os troianos são recebidos por Evandro com um banquete de consagração a Hércules, Evandro conta a história do monstro Caco. Evandro faz uma visita guiada, mostrando a cidade a Eneias. Vénus suplica armas a Vulcano, seu marido. Vulcano forja então o escudo de Eneias. (remetendo-nos para o episódio do escudo de Aquiles, da Ilíada de Homero) Um relâmpago dá então o sinal das armas de Eneias. Palante, filho de Evandro vai então para a guerra com Eneias. Evandro suplica aos deuses que não permitam que o seu filho morra. Vénus leva então as armas a Eneias. É-nos dada a descrição do escudo de Eneias, onde Eneias aparece como vencedor da batalha de Áccio.
Simbologias da Eneida
Eneias na corte de Latino, óleo em tela de Ferdinando Bol, 1661-1663 ca, Rijksmuseum, em Amsterdam
A Eneida simboliza o poder do Império Romano, sob o comando de Augusto.
Dido simboliza o poder de Cartago, rival de Roma, que seria por esta destruída na Terceira Guerra Púnica. Dido também simboliza Cleópatra, rainha do Egipto, que se tinha aliado a um general romano, Marco António, para resistir a Roma. Marco António e Cleópatra foram derrotados na batalha de Áccio, ao largo do delta do Nilo e o Egito transformado em província romana. Dido simboliza assim a mulher misteriosa e sedutora do Oriente, que resiste ao poder romano mas que por ele é submetida. Por metonímia simboliza todo o Médio Oriente e Norte de África, que foram as últimas terras a serem conquistadas pelo Império Romano.
Turno simboliza os antecedentes latinos da "raça" romana, enquanto Eneias simboliza os antecedentes troianos (que são ficcionais). Eneias é uma personagem que permite dar a Roma uma ascendência mítica, juntando-se assim ao mito da fundação de Roma por Rómulo e Remo.
Repercussões literárias da Eneida
Dante Alighieri, no seu famoso episódio da descida aos infernos, é levado pela mão de Virgílio para ver os mesmos.
Luís de Camões inspira-se directamente neste grande épico romano para escrever os seus Os Lusíadas.
CAPCOM inspira-se no autor para criar a personagem Vergil do jogo, "DEVIL MAY CRY".
Traduções
Há algumas traduções da Eneida para a língua portuguesa, feitas do latim. Em verso, citam-se a "Eneida Portuguesa", de João Franco Barreto, em oitava-rima, do século XVII, e a "Eneida Brasileira", de Manuel Odorico Mendes, do século XIX, que utilizou o decassílabo branco; além destas, há a tradução de Carlos Alberto da Costa Nunes, do século XX, que utilizou o verso de dezesseis sílabas poéticas para verter o hexâmetro dactílico épico; e a portuguesa de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva, do século XIX, em decassílabos. Em prosa, publicaram-se as traduções de Tassilo Orpheu Spalding,  Jaime Bruna e David Jardim Jr.


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